Estou a vê-lo!
Baixote, gordo, semi-careca, sobrancelhas farfalhudas. Atrás da orelha salientava-se uma excrescência do tamanho de um ovo de galinha, que avermelhava com o frio e com a irritação. Usava cara rapada e tinha o pescoço excessivamente curto. A voz era aflautada, mas cortante. Do tronco desproporcionado, descia a barriga, que as calças riscadas não escondiam, as mais das vezes.
Com passinhos curtos e ligeiros, passava sempre desconfiado de que mofavam dele, e não se enganava.
Era pessoa de hábitos simples: vivia humildemente, com sua mãe – velhota muito corcovada, aleijada dum pé, - num casebre térreo, sem janela.
Iria, ao tempo, nos seus cinquenta, bem contados. Por ser gorducho, disse, nas vésperas da inspecção militar, “aqui não há osso”, pelo que o povinho passou a chamar-lhe João Sem Osso; mais tarde, talvez obedecendo à lei do menor esforço, desapareceu o “Sem”, e todos conheciam o nosso curioso protagonista por João Osso.
Este homem gozada, anualmente, duas horas de irresponsabilidade: irresponsável perante a Lei, a Religião e as Conveniências.
Na noite de 2 de Dezembro, o rapazio, provocando infernal algazarra, agitando chocalhos e campainhas de todos os tamanhos e feitios, batendo, furiosamente, em velhas latas, com paus secos, assoprando cornetas, assobios, pífaros, ensurdecia a povoação – naquela divertida noite.
Primeiramente, esta “Música” percorria as ruas da aldeia: tratava-se da convocação dos que desejavam ouvir o “sermão” do João Osso. Depois o “Orador” era conduzido, festivamente, da sua casota para a Esquina, largozito da aldeia, formado pelo cruzamento de duas ruas. Na Esquina levantava-se uma grande cruz de granito negro, musgosa, encostada à parede esburacada de vulgar casa de aldeia.
(…)
Vingava-se então, fartamente, dos seus desgostos, sofridos em silêncio durante um ano inteiro, causados pelos marotos… Na verdade, parecia que ninguém, desde o traquinas rapazito da Escola, ao septuagenário mais sisudo, passava pelo Osso, que não tivesse para ele um dito chistoso.
- Não importa – considerava com seus botões João Osso – Eu tirarei a desforra!
E desforrava-se, na “sua” noite, retumbantemente.
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É este o início do primeiro conto do livro “João Osso”, da autoria de Anastácio Lalanda (± 1940). Na altura recebeu além de outras, as seguintes críticas:
(…) Aquela figura de justiceiro, que uma vez por ano sobe a uma espécie de púlpito e põe a nu as fraquezas, as misérias, as vergonhas da aldeia, que foi registando durante o ano decorrido, tinha realmente em si com que permitir a um verdadeiro escritor uma obra original, forte e densa. A simplicidade com que nos é apresentada essa figura, agrada; o que há de original no caso, desperta o interesse.
Adolfo Casais Monteiro - Diário Popular, 1942
O autor, sob aquela designação (João Osso) conta também certas histórias como as que o João Osso contava, mas certamente com muito mais arte, pois neste livro se mostra um consumado escritor, visionando bem as figuras, as situações, os diálogos cheios de natural espontaneidade.
Sem identificação – Diário de Notícias, 28/05/43
O Sr. Anastácio Lalanda escreveu “João Osso”, que parece ser uma série de crónicas sobre episódios pitorescos ocorridos em determinada aldeia da Beira. E parece ser, apenas porque o Sr. Anastácio Lalanda não lhes dá nome e fica, portanto, ao leitor a dúvida da classificação a atribuir-lhes. Seja como for, é uma obra interessante e, sob muitos pontos de vista, absolutamente inédita.
Sem identificação – República, 13/01/43
Ignoramos qual o nome do escritor que se oculta sob a firma – evidentemente um pseudónimo – de Anastácio Lalanda. O que sabemos, porém, é tratar-se de um prosador de inegáveis recursos. Nos seus contos, misturam-se, a cada passo, o drama e a farsa. Graças a esse doseamento, feito com talento e engenho, dá-nos o autor um livro cheio de originalidade, cuja leitura não cansa, até ao fim.
Sem identificação – Diário da Manhã, 21/11/43
(…) Parecem todas tiradas do natural, e aparte uma ou outra, como por exemplo O Julinho de Lisboa, em que se nota uma pontinhas de exagero caricatural, há nelas um grande fundo de realidade, revelando da parte do autor notáveis qualidades de observação e exteriorização.
Sem identificação – O Sol, 23/03/42
Se conseguir encontrar um exemplar, leia. Recomendo.
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